Contos
Mundo Mediterrâneo

O touro azul

level 4
Dificuldade ****

Sumário: Uma estranha criatura, masi precisamente um touro azul, consegue ajudar uma pobre rapariga a sair da escravatura da madrasta.

Era uma menina que ficou sem mãe e o pai arranjou uma madrasta. E a madrasta mandava a menina ir guardar as vacas, e ela ia. E dava-lhe um bocado de pão já bolorento e água, era o que dava para a menina almoçar. E a menina, coitadinha, olhava para aquilo, não lhe apetecia comer e andava muito triste e chorava, chorava.
Um dia estava lá um touro junto com as vacas. O touro pôs-se a olhar e vê a menina assim. E disse assim:
– Ó menina – (Eu acho que a menina devia de se chamar Corinda, mas a minha
avó até contava a história e dizia… Não me lembro como é que ela dizia… Bom era a Corinda.) E ele disse:
– Então o que é que choras Corinda?
E ela dizia assim:
– Ah, pois eu não me apetece comer este pão. A minha madrasta dá-me sempre
este pão eu não gosto disto.
E a menina estava a ficar muito magrinha, muito magrinha. E o Touro Azul disse-
lhe assim – chamava-se Touro Azul:
– Olha, olha lá para dentro aqui da minha orelha direita. O que é que tu vês?
E a menina olhou, olhou:
– Ah, vejo, vejo um… Parece um pano.
– Então tira lá.
Tirou, era uma toalha.
– Estende aí no chão.
A menina estendeu.
– Agora vai tirando tudo o que encontrares lá dentro.
E a menina ia tirando. Bem, ali apareceu de tudo para ela comer, tudo coisas boas. A menina comia, comia… Todos os dias fazia aquilo, e a menina estava ficando muito gorda. E a madrasta:
– Olá, então eu dou-lhe pão bolorento e ela parece assim tão bonita, tão gorda?
Aqui há qualquer coisa… Eu vou espreitar.
Passou a ir espreitar, até que apanhou a menina a fazer aquilo. O que é que ela pensou?
– Ah, eu agora mando matar o Touro Azul.
E então, pôs-se um dia a dizer ao marido que tinham que matar o Touro Azul. A menina ouviu aquilo, foi logo e disse:
– Ai, Touro Azul, a minha madrasta quer-te matar. E agora o que é que a gente
faz?
Diz ele assim:
– Não chores, não chores. Olha, fugimos. Monta-te lá que a gente vamos fugir.
Lá foram os dois, ela em cima do touro. Foram, andaram, andaram, andaram muito até que ele diz assim:
– Olha lá o que é que tu avistas?
– Ah, eu avisto uma árvore, uma árvore muito bonita. Aquela árvore parece mesmo de prata.
– Ah, é uma árvore de prata. Olha, quando chegares além, tu não toques. Deita-te assim em cima de mim e não toques na árvore, porque se tocares na árvore vem um bicho de sete… cinco cabeças e mata-me.
– Está bem.
Ela foi, chegaram à árvore. Ela agachou-se assim muito, e tocou e partiu um bocadinho da árvore. Partiu um bocadinho da árvore, oh, quando aparece aquele bicho com cinco cabeças. Ele disse logo:
– Olha, afasta-te.
Começou à luta, à luta, à luta com o bicho, lá conseguiu matar o bicho. Mas ele ficou ferido. Diz ele:
– Olha, Corinda, pega lá nos bocadinhos da árvore e põe em cima das feridas.
Pôs em cima das feridas e ficaram à espera que as feridas se curassem. Quando ele já estava melhorzinho, abalaram, foram outra vez, andaram. Quando ela queria comer, tirava a comida de dentro do touro e o touro comia o que havia nas terras, o que encontravam. E lá iam.
Eles lá foram, foram:
– O que é que avistas?
– Ai, Touro Azul, ai, uma árvore tão linda, tão linda… Olha, aquilo parece mesmo cobre.
– É de cobre. Aí tu tens que ter muito cuidado, senão vem um bicho de seis cabeças e mata-me. Olha que esse, então, mata-me.
– Ai, sim Touro Azul, eu vou ter muito cuidado.
Lá vão eles. Ela, agachou-se, agachou-se, mas aquilo não serviu de nada. Ela roçou na árvore, partiu a árvore. Lá vem o bicho das seis cabeças. Há luta outra vez.
Bom, lá ele lutou, lutou e ela chorava a ver aquilo tudo, a chorar com pena dele. Lá põe lá outra vez os bocadinhos. Conseguiu matar o bicho, põe os bocadinhos até as feridas ficaram curadas. Lá foram outra vez. Bom, lá andaram, andaram…
– Então agora o que é que avistas?
– Ai, olha, é uma árvore tão linda, tão linda, tão linda… Olha, parece mesmo
ouro.
– É ouro! Olha, agora vem um bicho-de-sete-cabeças. Agora é que ele me mata mesmo. Tens que ter muito cuidado, muito cuidado.
Ela esticou-se toda em cima do touro, mas partiu um bocadinho da árvore. Vem o bicho outra vez. Outra vez a andarem à luta, à luta, até que lá conseguiram, lá conseguiu. Ele muito mal, lá tratou das feridas outra vez. Lá foram outra vez.
Foram, foram, diz ele assim:
– O que é que avistas?
– Olha, avisto uma casinha branca com uma luzinha.
– Então, olha, tiras uma faca de dentro da minha orelha e matas-me e enterras ali. E vais além aquela casa pedir trabalho, onde vês a luzinha.
– Ai, eu não faço isso. Não, Touro Azul, eu não posso fazer isso.
– Tens que fazer, tens que fazer! Tu matas-me, me enterras ali e vais além aquela casa.
E a rapariga, coitada, não queria, pois era o amiguinho dela. Mas tanto ele insistiu, que ela fez. E enterrou-o e lá foi pedir trabalho àquela casa.
Foi pedir trabalho, deram trabalho. Mas ela, coitadita, trabalhava muito lá. E ela era muito linda e dormia no sótão com a janela aberta. E todos os dias de manhã os passarinhos iam para a acordar, acordavam e cantavam:
– Corinda, Corinda são horas, são horas!
E cantavam os passarinhos, e cantavam os passarinhos… E ela lá descia para trabalhar. Até que um dia havia lá uma grande festa, lá na cidade. E ela disse assim:
– Ah, vai tudo à festa só eu é que não vou à festa… Tenho pena de não ir à
festa…
E apareceu-lhe uma fada. E a fada disse assim:
– Então porque é que não vais à festa?
– Então, eu não tenho roupa, eu não tenho nada, não posso ir à festa.
– Olha, toma lá esta varinha e vai bater além onde está o Touro, o Touro Azul enterrado.
E ela foi e apareceu-lhe um lindo carro, muito lindo e umas roupas. Ela ficou logo muito linda, com umas lindas roupas, toda muito linda, muito linda. E a fada disse-lhe:
– Mas tu, à meia-noite tens que vir para casa, porque aí depois sai-te o vestido, sai-te os sapatos, sai-te tudo e descobrem quem tu és. E tu tens que vir para casa, não podes esperar pela meia-noite. Meia-noite em ponto tudo desaparece.
– Está bem, está bem, está bem.
Bom, lá foi ela para a festa. Entrou lá, viram uma rapariga tão linda, lá o filho do príncipe, o príncipe, o filho do rei ficou tão encantado que foi logo buscá-la para dançar. E toda a gente a olhar para aquela rapariga e a madrasta e a filha da madrasta, da patroa, a patroa e a filha da patroa, ninguém a conheceu porque ela ia tão linda. E andou a dançar com ele tudo muito bonito. Mas quando ela se lembrou, já era mesmo quase meia-noite e ela desata a correr por aquelas escadas abaixo, perdeu um sapato. E lá vai ela, antes que viessem as badaladas da meia–noite. Foi ele atrás dela, apanhou o sapato. Ficou um sapato muito lindo e mandou lá os empregados dele irem à procura a quem servia aquele sapato, a todas as raparigas daquela cidade ali, onde para ver se encontravam. Bem, foram, procuraram tudo, tudo, tudo, não encontraram nenhum pé para aquele sapato.
Até que foram lá a essa casa. Foram a essa casa, e os passarinhos estavam a ver
a filha da patroa a calçar, e os passarinhos diziam assim:
– O pezinho está incomodado, o sapatinho é da Corinda, o sapatinho é da Corinda.
E o homem dizia:
– Mas quem é essa Corinda? Quem é essa?
– Ai, é a nossa empregada que está aí. Mas isto não é dela, isto não é dela.
E a outra vá de meter o pé a ver se o sapato lhe cabia. Já o pé a correr sangue e
ela a insistir, a insistir. E os passarinhos:
– O pé está incomodado, o sapatinho é da Corinda, o sapatinho é da Corinda.
Até que o homem disse:
– Olhem lá, chamem lá essa Corinda. Vamos lá ver!
Ora, foram chamar a Corinda. A Corinda veio, vai enfiar o pezinho no sapato, oh, apareceu logo o vestido e ela ficou logo toda muito linda. Bem, a outra ia rebentando, só de ver aquela tão bonita e o sapato não lhe servia a ela. Lá foi, levaram a Corinda ao príncipe. O príncipe, quando a viu pediu-a logo em casamento. Fizeram uma grande festa, casaram e foram muito felizes.

MARQUES, J.J. Dias, “O touro azul”, O conto tradicional português no séc XXI, Lisboa, IELT, 2021