Contos
Mundo Mediterrâneo

Corre, corre cabacinha

level 2
Dificuldade **

Era uma vez uma velha muito velha, mãe de muitos filhos e avó de muitos netos.
Vivia numa casa escondida na floresta, me sabia como ninguém fazer pão-de-ló, arrozdoce, coscorões e papas de farinha com mel.

De vez em quando, um dos seus muitos filhos batia-lhe à porta e dizia-lhe:
Nós te fizemos
outra vez avó
nós te fizemos
avó outra vez:
leva pão de ló
para o batizado
que é no fim do mês.

Então a velha passava trinta dias e trinta noites junto do fogão a fazer pão-de-ló, arroz-doce, coscorões e papas de farinha com mel e no dia aprazado metia tudo dentro de uma cesta, agarrava-se ao cajado – que os anos já pesavam -, atravessava a floresta e ia até à aldeia, para o batizado de mais um neto.

Um dia um dos filhos bateu-lhe à porta e disse:
Nós te fizemos
outra vez avó
nós te fizemos
avó outra vez:
leva pão de ló
para o batizado
que é no fim do mês.
Só que desta vez
vais levar também
padrinho a preceito:
já corremos tudo
já tudo corremos
padrinho de jeito
é que nós não temos.

A velha ficou aflita: vivia sozinha e não conhecia ninguém que pudesse servir de padrinho ao neto acabado de nascer. Mas no dia aprazado pegou no cajado e pôs-se ao caminho, a cesta bem carregadinha com as iguarias do costume.

Ainda mal acabara de passar a primeira clareira da floresta quando o lobo lhe salta ao caminho, gritando:
Velha, velhinha
velha, velhão
como-te inteirinha
com cesta e bordão!

Tremendo, tremendo, tremendo de medo, a velha respondeu:
Eu estou tão magrinha,
nem terei sabor!
Deixa-me ir à festa,
voltarei melhor,
com a barriga cheia
de mel e farinha
poderás então
comer-me inteirinha
com cesta e bordão!

O lobo pensou uma, pensou duas, pensou três vezes, e lá deixou a velha seguir o seu caminho, não sem antes a ter feito jurar que, assim que o Sol desaparecesse nas montanhas, ela voltaria do batizado para ele a comer e matar finalmente a fome.

Tão assustada ia a velha pelo caminho fora que nem reparou num vendedor de cabaças que dela se aproximava, perguntando:
Onde vais, velhinha
assim tão curvada
que foi que te pôs
assim assustada?

Tremendo, tremendo, tremendo de medo, a velha respondeu:
Vou ao batizado
de mais um netinho,
vou cheia de medo
e não acho padrinho.

E logo ali lhe contou o que se tinha passado e o que prometera ao lobo. O velho conversou uns minutos com as suas cabaças, e depois ofereceu-se para padrinho, dizendolhe que não pensasse mais no assunto, que tudo se resolveria:
Comei e bebei
bebei e comei,
que em chegando a hora
eu vos salvarei!

Batizado foi o neto, e a tarde se passou em danças e folias, com muito pão-de-ló, arroz-doce, coscorões e papas de farinha com mel.

E, de vez em quando, a velha murmurava:
Compadre, dizei:
em chegando a hora
como escaparei?

Mas o velho bailava, bailava, e só respondia:
Comei e bebei
bebei e comei,
que em chegando a hora
eu vos salvarei.

Quando o Sol desapareceu nas montanhas, o velho, foi então buscar uma das suas cabaças, a maior de todas, a mais redondinha e amarela, e disse à velha que se metesse lá dentro e fosse a rolar pelo caminho fora até casa, sem nunca parar.

E assim a velha foi rolando, rolando, rolando, por caminhos e ladeiras, atalhos e clareiras, quando de repente o lobo lhe saltou ao caminho, perguntando:
Ó cabaça, cabacinha
amarela, redondinha,
não viste no teu caminho
uma velha mirradinha?

Tremendo, tremendo, tremendo de medo, a velha respondeu:
Não vi velha nem velhinha
não vi velha nem velhão
corre, corre, cabacinha
corre, corre, cabação.

E lá continuou rolando, rolando, rolando sem parar, por caminhos e ladeiras,
atalhos e clareiras.

Mas o lobo não desistia à primeira. Ia a velha já a atravessar a segunda clareira da floresta quando ele lhe saltou de novo ao caminho, dizendo:
Lembro-me agora que a velha
devia vir mais gordinha:
não viste velha anafada,
ó cabaça, cabacinha?

Tremendo, tremendo, tremendo de medo, a velha respondeu:
Não vi velha nem velhinha
não vi velha nem velhão
corre, corre, cabacinha
corre, corre, cabação.

Nem mesmo assim o lobo se convenceu. Estava a velha a atravessar a última clareira
da floresta quando ele lhe salta de novo ao caminho, gritando:
Gorda ou magra, tanto faz,
se velha não tenho, tu me bastarás!

E com um salto preparava-se para lhe cair em cima quando a cabaça, com a velha dentro, veio a rolar, a rolar, a rolar pela ladeira abaixo, sempre mais depressa, entrando de rompante pela casa dentro, deixando o lobo a perder de vista.

Logo a velha para fora da cabaça pulou, a porta trancou e de alegria bailou. E quando, meses depois, outro dos seus filhos lhe bateu à porta para lhe anunciar o nascimento de mais outro neto, ainda ela cantava:
Não vi velha nem velhinha
não vi velha nem velhão
corre, corre, cabacinha
corre, corre, cabação.

Vieira, Alice e Lopes, Maria João, Corre, Corre, Cabacinha. Caminho,2009